quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Grande Reportagem: "Companheiros da Noite: para quem um 'simples obrigada...vale ouro'"


Aquecem a noite dos mais necessitados, ajudam-nos, levam-lhes sorrisos e partilham com eles os bons e os maus momentos. São indivíduos comuns, pessoas ditas normais, apenas com uma particularidade: são voluntários e apoiam os sem-abrigo. Numa altura em que cresce o número dos denominados “novos pobres”, a missão destes Companheiros da Noite torna-se mais importante e cada vez mais ambiciosa.


“Lidar com o ‘Sr. António’ [nome fictício] é muito complicado, mas muito gratificante também. Ele é uma pessoa fantástica e gosta muito de nós, mas o seu mau feitio por vezes também vem ao de cima”.

O ‘Sr. António’, decidimos chamar-lhe assim, é um dos sem-abrigo com os quais Sandra Carvalhinho, voluntária da instituição Companheiros da Noite, viveu uma das histórias mais complicadas desde que se tornou voluntária. A descrição que faz do sem-abrigo denota não só a típica compaixão, como também uma certa ternura pelo homem que conhece há cerca de dois anos e meio, altura em que entrou para a instituição. O sem-abrigo, “já com uma certa idade”, esclareceu a voluntária, vive numa barraca por ele construída, em plena Lezíria do Tejo, perto Vila Franca de Xira. “O ‘Sr. António’ não gosta de dar trabalho e faz sempre questão de nos convidar para entrar em sua ‘casa’. É o único sem-abrigo que cumprimentamos com um beijo… ele fica feliz”, revelou Sandra Carvalhinho.

No Verão de 2009, contou a voluntária, o ‘Sr. António’ viu a barraca onde vivia ser devorada por uma forte trovoada. “Ficou com tudo molhado e, consequentemente, estragado… Ele sofreu imenso porque as poucas coisas que tinha ficaram inutilizadas”, disse Sandra Carvalhinho, acrescentando que aquela “foi uma noite muito complicada para todos, principalmente porque o ‘Sr. António’ não aceitou sair da sua casa”.


Não são poucos os casos como o do ‘Sr. António’. “Por vezes, sentimos uma revolta muito grande porque eles nem sequer querem ser ajudados”, confessou a voluntária, revelando que lidar com pessoas como os sem-abrigo é “bastante complicado”. Ainda assim, a força de querer ajudar e o facto de sempre lhe ter feito “muita confusão a quantidade de pessoas que vivem nas ruas” são motivos mais do que suficientes para continuar o seu trabalho. “Desde sempre que tenho vontade de apoiar uma instituição, mas como o dinheiro não abunda para grandes contribuições decidi que tinha que ser mesmo com o meu trabalho”, afirmou.

A escolha da instituição revelou-se bastante fácil. “Sempre quis fazer voluntariado na minha zona, pelo que, procurei por aqui uma instituição que desse apoio aos sem-abrigo”, disse Sandra Carvalhinho. “Acho que faz mais sentido ajudar as ‘nossas gentes’”, acrescentou.

A instituição, que surgiu em Dezembro de 2002 por iniciativa particular de um pequeno grupo de amigos, já conta com cerca de 30 voluntários que ajudam a manter o projecto de pé e garantem a sobrevivência de muitos dos sem-abrigo e dos carenciados entre a Póvoa de Santa Iria e Vila Franca de Xira.

Rita Mendonça, presidente e uma das fundadoras da associação, esclareceu que apesar da prioridade da instituição serem os sem-abrigo e as pessoas que vivem em barracas sem água e sem luz, actualmente, “quando as assistentes sociais nos pedem” os voluntários dos Companheiros da Noite acabam por dar apoio a pessoas carenciadas que têm casa, mas que “por diversos motivos” vivem em condições mínimas de sobrevivência. “São pessoas que têm as mesmas roupas e os mesmos carros, mas não têm comida”, esclareceu a presidente. Contudo, estes “novos pobres, como lhes chamam as assistentes sociais” não são, de todo, a prioridade da associação.

Com uma pequena sede situada no Quartel dos Bombeiros da Póvoa de Santa Iria, os Companheiros da Noite reúnem-se todas as quartas-feiras e todos os sábados para a preparação das rondas nocturnas, onde vão ao encontro dos sem-abrigo e das famílias carenciadas do concelho. O percurso é sempre o mesmo e os pontos de paragem já são conhecidos pelos mais necessitados. “Temos sítios estipulados e aparecemos lá às horas combinadas”, esclareceu Rita Mendonça, presidente da associação que, sempre que pode, se disponibiliza para participar nas rondas. “Eles próprios passam a palavra uns aos outros”, acrescentou. No entanto, segundo Rita Mendonça, “há alturas em que damos mais uma voltinha” para procurar novos casos e também “há locais de difícil acesso onde temos que ir directamente, principalmente porque as pessoas têm alguma falta de mobilidade”.

As ajudas que chegam à associação são poucas, no entanto, para Rita Mendonça, o facto da associação já ser conhecida no concelho acaba por facilitar a chegada de ajudas. “Preocupamo-nos em pedir mais alimentos e roupas do que dinheiro”, declarou, acrescentando que, muitas vezes, algumas associações desenvolvem actividades cujos lucros revertem “a nosso favor”. “Ainda há pouco tempo, num encontro de escuteiros, foram recolhidos alimentos e cobertores que nos foram doados”, exemplificou Rita Mendonça.

Às pessoas da rua chega, assim, duas vezes por semana, um saco com alimentos de primeira necessidade e alguma roupa. No entanto, não são apenas os bens materiais que os levam até às carrinhas da associação. Para muitas destas pessoas, a palavra e o ouvido amigo ou o simples hábito de ir ter com aqueles voluntários acaba por ser a razão mais forte que os conduz até ao ponto de encontro frequente. “Há um pouco de tudo e nós temos que respeitar”, revelou Rita Mendonça, acrescentando que “muitos têm o hábito de ir ter connosco mais para falar e para exprimir as suas revoltas”.

Os Companheiros da Noite são voluntários com idades compreendidas entre os 30 e os 40 anos, maioritariamente mulheres, que, para além das rondas de quarta e de sábado, acabam por participar numa série de actividades de divulgação da associação e de angariação de fundos, bem como, assistir a diversas formações. Sandra Carvalhinho, a voluntária de 36 anos, explica que os voluntários fazem de tudo. “Entre descascar batatas, cebolas, cenouras, arranjar couve, fazer mais de 100 sandes por dia, lavar a loiça…”, há sempre muito por onde ajudar. “Os voluntários com mais disponibilidade” acabam por trabalhar mais do que a quarta-feira e o sábado, acrescentou. “Todas as questões mais burocráticas, como tentar arranjar quartos e casas junto da Câmara ou levar os sem-abrigo ao médico ou ao centro de emprego, também são feitas por nós”, explicou.

O que move estas pessoas é não só “melhorar um bocadinho as condições de vida” das pessoas da rua, como também “fazer o seu reencaminhamento para instituições ou para locais mais apropriados”, explicou a presidente da instituição. “Não chega dar-lhes comer, é preciso ir mais além” e, por este motivo, um dos projectos que têm em mente é a criação de uma equipa multidisciplinar, que inclua um enfermeiro, um psicólogo, um assistente social e um médico, de forma a fazer frente aos longos processos de criação e desenvolvimento de novos rumos para estas pessoas. “A ideia é que os profissionais cheguem aos sem-abrigo, uma vez que, muitas vezes, para nós é muito complicado tirá-los da rua”, acrescentou a mentora do projecto.

Ainda assim, Rita Mendonça mostra-se satisfeita com alguns resultados já obtidos pois, segundo a mesma, “já temos conseguido alguns reencaminhamentos, nomeadamente para desintoxicações”. Por outro lado, os voluntários também se têm preocupado em regular algumas situações de sem-abrigo que são ilegais ou que não têm rendimentos porque “não trataram dos papéis”.

Depois de serem tirados da rua, os ex-sem-abrigo continuam a ter algum apoio da associação. “Nos primeiros meses torna-se fundamental acompanhá-los até ter a certeza de que a situação está encaminhada”, disse Rita Mendonça, focando-se na história de uma série de famílias que, há uns tempos, dormiam em palheiros e que foram realojadas - “Um mês ou dois depois do realojamento, continuamos a ter contacto com essas famílias de forma a entregarmos roupa de cama, talheres, pratos e fogões”.

A voluntária Sandra Carvalhinho recorda uma história com as mesmas características que a presidente mencionou. Há uns tempos “arranjamos um quarto a um sem-abrigo” com o qual se sentiram obrigados a continuar “a ajudar durante uns tempos”. “Um dia fomos lá para lhe levar a sopa e o saco com comida, tocámos à campainha e ele veio à janela dizer para nós subirmos porque ele não podia descer. Claro que tive de lhe responder que eu não era da Telepizza e que tinha que ser ele a vir ter connosco”, recordou a voluntária, mostrando que o trabalho, apesar de recompensador, “nem sempre é fácil”.

“Alguns não lhes podemos dar muita conversa senão eles esticam-se. Outros começam a fazer exigências”, referiu a voluntária. “Dizem que já estão enjoados da sopa, que as sandes são sempre do mesmo, que devíamos dar-lhes dinheiro ou levarmos tabaco”, acrescentou Sandra Carvalhinho, referindo que é importante que os sem-abrigo percebam que a instituição faz o melhor que pode e que a ajuda prestada “é do fundo do coração”.

Para Sandra Carvalhinho, são situações como esta que a fazem questionar “o que é que ando aqui a fazer?”, contudo, é a vontade de querer “ajudar alguém que prevalece e que nos leva a não desistir”. “Um sorriso, apenas, compensa tudo… e dá-nos a força suficiente para, na semana seguinte, estarmos lá novamente, com frio, com chuva, com calor, o que seja… mas sempre de coração aberto”, adiantou a voluntária.

Situações recompensadoras são, para Sandra Carvalhinho, mais do que muitas, no entanto, a voluntária admite que aquelas em que “facilmente” se envolve são as que a marcam mais. Visivelmente emocionada contou que, num sábado, quando chegou aos Bombeiros de Vila Franca de Xira, um dos locais onde distribuem refeições, “estava lá um sem-abrigo com o filho”. “O miúdo tinha cerca de 10 anos, pouco mais novo do que o meu filho e vivia, habitualmente, com a mãe. Era uma criança muito dócil, com quem estive a falar algum tempo”, explicou Sandra Carvalhinho. A criança acabou por lhe confessar que apesar do pai não ter uma casa, nunca quis deixar de manter contacto com ele, por isso, “nos fins-de-semana que pertenciam ao pai, vinha passa-los com ele e ficava a pernoitar na rua”. “Pediu-me uma mochila para levar os livros para a escola porque a dele estava estragada”, contou a voluntária, confessando que ficou “transtornada com a situação” e que rapidamente foi a casa buscar uma mochila do seu filho para lhe entregar.

A voluntária, que actualmente se encontra relativamente afastada da instituição por dificuldade em conciliar a vida pessoal com os trabalhos dos Companheiros da Noite, acredita que, como em tudo na vida, “há sem-abrigos melhores e outros piores”, sendo que, para os voluntários, um sorriso ou um agradecimento já é mais do que suficiente para que o seu trabalho valha a pena. Apreensiva quanto ao facto de estar distanciada da associação, Sandra Carvalhinho deixou a promessa de voltar “em força, muito em breve”.

1 comentário:

Brilhante disse...

Já não é novo mas não deixa de ser um bom trabalho ;)